sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Epicuro e a Felicidade


Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.), nasceu em Samos, uma ilha grega a leste do mar Egeu. Quando jovem estudou em Atenas e era considerado um dos melhores alunos. Certa vez, ao ouvir a frase de Hesíodo, “todas as coisas vieram do caos”, ele perguntou: “E o caos veio de que?". Retornou para sua terra natal em 323 a.C. Sofria de cálculo renal, o que contribuiu para que tivesse uma vida marcada pela dor. Mas nunca se rendeu ao pessimismo.

A obra de Epicuro inclui mais de 300 títulos, infelizmente reduzidos a poucos fragmentos. Das cartas, a mais famosa é endereçada a seu amigo Meneceu, também conhecida como carta da felicidade.

A filosofia, segundo Epicuro, divide-se em três partes:

1. A canônica ou lógica, que trata do conhecimento e dos critérios para distinguir o verdadeiro do falso.

2. A física, cujo objeto é explicar a realidade, não apenas com uma finalidade especulativa, mas para libertar o homem do temor do destino, dos deuses e da morte, os três grandes obstáculos para se conquistar a paz de espírito e a felicidade.

3. A ética, parte fundamental da filosofia,  que trata dos meios adequados para se alcançar a felicidade.

As três parte articulam-se em sequência: a lógica conduz à física que culmina com a ética. Ou seja, precisamos, primeiro, aprender a pensar, depois entender o mundo e ao fim aprender a viver bem. Sabedoria simples e correta.

O propósito da filosofia para Epicuro era atingir a felicidade, estado caracterizado pela aponia, a ausência de dor e a ataraxia ou imperturbabilidade da alma. O prazer não deve ser buscado a qualquer custo, daí o epicurismo não se confundir com o hedonismo, esse sim a prática do prazer como bem absoluto.

O prazer de que fala Epicuro é o prazer do sábio, entendido como quietude da mente e o domínio sobre as emoções e, portanto, sobre si mesmo. É o prazer da justa medida e não dos excessos.
Em tempos de consumismo materialista, a lição de Epicuro decorre da classificação racional dos desejos e não de uma censura sobre eles.

Os desejos são:

a. Naturais e necessários, como a fome, a sede, o sono;

b. Naturais e não necessários, como a busca do meramente agradável,  que não compromete a sobrevivência, a exemplo do sexo; após a psicanálise, fica difícil aceitar que o sexo não é necessário...

c. Não-naturais ou artificiais, desnecessários e até nocivos, como a necessidade de riqueza, glória, poder ou uma irrealizável imortalidade.

Como se observa, devemos evitar os mais artificiais e nocivos, sem abrir mão dos prazeres da sobrevivência e da convivência. Assim vivia Epicuro em seu jardim, cercado de amigos e alimentando-se com frugalidade. "Bastam um pedaço de pão e um pedaço de queijo", dizia o filósofo, "e uma refeição compartilhada entre amigos." É a primeira noção de ágape, a comensalidade e a virtude da amizade como condições para se viver bem.

Atualizando Epicuro em nosso mundo industrial movido pela roda-vida da produção e do consumo, podemos hierarquizar os desejos de modo lógico e mais saudável:

a.       Se tenho sede, bebo água, forma natural e salubre;
b.      Se tenho sede, bebo refrigerante ou cerveja, que correspondem ao desejo natural (a sede) mas não são imprescindíveis à sobrevivência do corpo. Sei que neste caso, muitos vão discordar...
c.    O exemplo óbvio do artificial e nocivo é o tabagismo: o fumante pode até sentir desejo de fumar e prazer ao fazê-lo, mas não é natural, necessário e muito menos benéfico. E nesta questão, uma grande verdade: o homem é o único animal que faz (prazeirosamente) o que lhe faz mal, seja física ou mentalmente falando.

Um rico comerciante que vivia na antiga província grega de Enoanda, hoje território da Turquia, mandou gravar nos muros da cidade os pensamentos de Epicuro, para que todos conhecessem. E com um detalhe irônico: no caminho que conduzia ao mercado... Hoje um importante sítio arqueológico, Enoanda contém vários ensinamentos de Epicuro numa extensão murada de cerca de 80 metros. As lições gravadas em pedra são uma sabedoria pétrea que atravessa milênios.

Para libertar os homens do medo dos deuses, Epicuro desenvolveu um paradoxo, um dilema lógico - ou trilema lógico - sobre o problema do mal e a indiferença das divindades quanto ao destino humano. O paradoxo de Epicuro tem servido de munição contra o monoteísmo e é ainda hoje um dos argumentos mais repetidos pelos ateus. Mas atenção: Epicuro nunca negou a existência dos deuses, fato impensável em sua época, por mais naturalista que fosse seu pensamento.

Dito no singular, eis o argumento:

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode.
Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.
Se pode e não quer, não é benevolente: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus.
Se nem quer nem pode, é malevolente e impotente: portanto nem sequer é Deus.
Se pode e quer, que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então existência dos males?
Por que razão é que não os impede?

Em termos teológicos mais precisos, o argumento toma a seguinte forma:

·         Enquanto onisciente e onipotente, Deus tem conhecimento de todo o mal e pode acabar com ele. Mas não o faz. Então não é onibenevolente.
·         Enquanto onipotente e onibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente.
·          Enquanto onisciente e onibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente.

A síntese dos ensinamentos de Epicuro está no tetrapharmakon (τετραϕάρμακον) ou os quatro remédios:
Não temer ou se preocupar com os deuses - não espere nada de bom ou de mau deles.
Não ter medo da morte – com o fim do corpo e o fim das sensações, nada sentimos.
Não há mal que dure para sempre e que não possa ser superado – tudo no mundo é finito e em constante mudança.
O bem pode ser alcançado – pela educação dos sentidos e pela tranquilidade da alma.

Se a lição de Buda é não acreditar em qualquer coisa, a de Epicuro é não se deixar dominar pelo desejo, pelo medo e pela superstição. E viver bem. E deixar que os outros vivam em paz.

Próximo texto: Espinosa e os afetos.

Prof. Reinério Simões (UERJ)


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Buda e a Autonomia de Pensamento


A compreensão e a empatia, que dependem do uso correto da inteligência e da sensibilidade, parecem artigo raro em 2017. Vamos começar a leitura de uma nobre linhagem de pensadores orientais e ocidentais. Apesar de épocas e locais diferentes, todos defendem em comum a necessidade urgente de esclarecimento, de autonomia de pensamento e vontade. Seja na meditação de Buda ou nos estudos das neurociências de hoje, tudo converge para a importância do altruísmo, do sentimento positivo, do amor e da paz.

Vamos começar com Sidarta Gautama (563 a.C. - 483 a. C.), O Buda, que deixou o seguinte ensinamento:

"Não acrediteis numa coisa apenas por ouvir dizer. Não acrediteis na fé das tradições só porque foram transmitidas por longas gerações. Não acrediteis numa coisa só porque é dita e repetida por muita gente. Não acrediteis numa coisa só pelo testemunho de um sábio antigo. Não acrediteis numa coisa só porque as probabilidades a favorecem ou porque um longo hábito vos leva a te-la por verdadeira. Não acrediteis no que imaginastes, pensando que um ser superior a revelou. Não acrediteis em coisa alguma apenas pela autoridade dos mais velhos ou dos vossos instrutores. Mas, aquilo que vós mesmos experimentastes, provastes e reconhecestes verdadeiro, aquilo que corresponde ao vosso bem e ao bem dos outros - isso deveis aceitar, e por isso moldar a vossa conduta."

Buda  (Kalama-Sutta)

Numa época em que islâmicos matam em nome de Deus, gritando Allahu akbar (Deus é grande), em que cristãos expulsam homossexuais de um prédio dizendo que eles contrariam a lei de Deus, ou ainda cristãos fundamentalistas de diversas denominações combatem o evolucionismo biológico considerando-o "artimanha do diabo", o ensinamento de Buda é um convite à inteligência, autonomia de pensamento e cautela crítica.

O problema não é a religião, mas o dogmatismo
.
O erro tão desastroso não é a crença, mas a crendice.

O que me impressiona não é se há ou se não há alguma divindade (ou mais que uma) no Cosmos.

O que me entristece - devo confessar o verdadeiro sentimento que me assola - é a legião de imbecis que se julgam porta-vozes de Deus. E são capazes de mutilar, matar, discriminar e apedrejar em nome de uma suposta divindade.

Sempre que releio essas palavras de Buda, percebo o quanto ainda estamos longe da verdadeira humanidade.

Você tem fé ou pretende ter fé?  Não acredite em qualquer coisa e muito menos em qualquer pessoa.

Esse é um paradoxo típico das religiões: para ter fé é preciso muitas vezes não crer.


Próximo texto: Epicuro e a felicidade.

Prof. Reinério Simões (UERJ)